sábado, 2 de fevereiro de 2008

Enunciados Científicos a título de Ensaios, não dominação política

Departamentos de Biociências e Medicina da UFRGS e da PUCRS estão candidatando uma pesquisa sobre as possíveis causas da violência nas mentes de homicidas adolescentes. A pesquisa, diz-nos o célebre e sério pesquisador Ivan Izquierdo, é de amplo espectro, multi – ou trans, ou inter – disciplinar e terá como “grupo de controle” jovens voluntários não-apenados e jovens apenados, na FASE (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Estado), por homicídio. A pesquisa, segundo Zero Hora do dia 28 de janeiro deste ano, visa a “investigar os mais variados aspectos que possam explicar o que leva um jovem a se comportar de maneira violenta” (matéria de Marcelo Gonzatto). Izquierdo escreveu, dias antes, um breve texto no qual acusa de obscurantistas aqueles que se opuseram à pesquisa. Os opositores seriam psicólogos, representados pelo Conselho Federal de Psicologia e estariam acusando a hipótese – negada pelos professores de UFRGS e PUCRS – de que esse empreendimento tomasse o determinismo biológico como pressuposto para um determinismo social. As duas coisas que fundamentam a reação dos psicólogos, nesse embate, são 1) a análise genética de jovens homicidas e 2) a escolha de jovens da FASE, já condenados por homicídio.

Uma das dificuldades para entender essa briga é que o único procedimento investigativo até agora especificado é a análise genética. Outra, que o grupo escolhido seja da FASE. O fato de que só a investigação da genética dos jovens homicidas apenados seja especificada na pesquisa multidisciplinar deve justificação, sobretudo porque só geneticistas ou neurocientistas, como é o caso de Izquierdo, pronunciaram-se como parte do interesse puramente científico que estaria ameaçado pelos obscurantistas. Nenhum jurista, nenhum antropólogo, sociólogo ou economista disse algo, ainda, quanto aos procedimentos que serão adotados nas suas investigações que farão parte da pesquisa. Disso sobressai pelo menos a hipótese de que o aspecto genético esteja sendo privilegiado. E esse privilégio, supostamente apresentado nos embates via jornal, certamente deve ser demonstrado. Por que uma investigação genética desempenharia algum privilégio epistêmico no acesso às causas da violência? Em quê essa variante da premissa naturalista fundamenta seu manifesto – ainda que midiaticamente – privilégio sobre as outras áreas, ditas partes do mesmo empreendimento investigativo? Uma das dificuldades incontornáveis dessa variante do uso da premissa naturalista consiste, vejam bem, em que não é verdade que o seqüenciamento do genoma humano está completo, de sorte que, falando rigorosamente, sequer se pode estar reivindicando como variante da premissa naturalista, tout court – e pelo menos ainda – o procedimento estritamente genético da pesquisa.

A busca dessa demonstração é o que diferencia um epistemólogo de um cientista e também é o que marca a distinção da ciência frente aos interesses mundanos. Portanto, essa demonstração é todo o ponto que merece ser esclarecido, quanto à primeira dificuldade e, também, à segunda, relativa à escolha dos condenados já na FASE. Ocorre que essa demonstração parece obscurecida pela fé de que 1) a ciência vai nos salvar da violência e 2) a violência é um fenômeno individualmente determinável. É evidente que é assustador, dado o grau de violência das cidades brasileiras – ou latino-americanas, africanas, do Leste Europeu, enfim -, perceber que há muita gente a levar essas duas crenças a sério. E, como não bastasse, jogando-as para o barco retórico do esclarecimento. O professor de neurologia da PUCRS, Jaderson Costa da Costa afirmou (ZH, 28/01/2008) que “com o que se conhece até agora, a situação [da violência] não mudou”. É, isso aí: o problema da violência é da ordem do conhecimento, não da ação. É mais um problema da série dos que estão, conforme Foucault disse, no “difundir-se” da destruição, sob o título de ciência.

Tudo se passa como se o conhecimento ocupasse o lugar das preces e da compra de lugares ao céu. Sendo que, no lugar de salvação das almas, resta a salvação do corpo e da saúde, ainda que esta, a saúde, tenha a característica reguladora da realização impossível. Um incauto poderia perguntar: por que impossível? Porque sociedades não são celestiais e a ordem das ações não pertence ao universo mágico dos anjos, mesmo que eles assinem cheques e autografem livros como fossem cientistas. Essa transfiguração do conhecimento em prece religiosa é tão dogmática como a aversão da psicologia – que não sei onde reside, exatamente – às considerações de natureza genética, não só sobre a violência.


Parte do texto da Katarina Peixoto, no Palestina do Espetáculo Triunfante. Ela faz uma densa reflexão sobre a pesquisa citada acima. A conferir seus textos completos, com parte I, parte II, ...

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