quinta-feira, 27 de março de 2008

Juno salve a América


Rosane Pavam (CARTA CAPITAL)

“Juno” ajuda a matar o tempo que tanto lutamos para ter. Por vezes é engraçado e pode nos fazer chorar numa cena de parto, por exemplo. Sua trilha, feminina e suave, embala o espectador desde a animação de abertura, de um jeito que já começa a inspirar a publicidade brasileira. Há algumas piadas no diálogo, às vezes em torno da possibilidade de um feto ter unhas. Imagino que este filme americano de emoções misturadas seja a escolha perfeita para um sábado de devedês daqui a seis meses.

Enquanto isto, talvez a obra merecesse ser um pouco mais discutida, até de maneira menos complacente, por todos os que entendem que as artes reproduzem modos de ser e pensar. Este filme rendeu um Oscar de roteiro original à escritora Diablo Cody. E não é uma bobagem inocente, como de resto nenhum filme.

O sucesso comercial de “Juno” aconteceu possivelmente porque o filme ajudou o americano a relaxar sobre o que ele próprio representa. Chega de se sentir excluído das simpatias do mundo! O diretor Jason Reitman veio para dizer que a América vale a pena, não importa a falta de escrúpulos que por vezes rodeie suas ações. Ser pragmático não é crime, se os fins são bons.

O filme gira em torno da menina que engravida de um corredor nerd, não tem coragem de abortar porque a recepcionista da clínica é estúpida e decide, com apoio do pai e da madrasta, doar seu filho a ricos responsáveis. “Juno” ridiculariza as clínicas de aborto, ainda permitidas na América, em nome do direito da livre escolha da grávida: é melhor que a mulher prossiga uma gravidez, mesmo que não tenha condição de criar seu filho, do que interrompa o erro original em um lugarzinho decadente. Curioso que o filme critique as recepcionistas sem noção e não informe sobre a qualidade dos médicos abortistas que ali trabalham.

Diablo Cody joga para a platéia um ponto de vista intrigante. Se dôo meu bebê (a “coisa”, segundo Juno) à ambiência da classe média em ascensão, não padeço de um constrangimento moral, antes contribuo para dar à criatura uma boa chance de vida e crescimento, além de favorecer a reprodução desta classe enquanto sigo a vida tocando ao violão uma canção que pode grudar.

Juno tem 16 anos e é bastante prática a respeito da vida que deseja dar para o filho em gestão. O problema não está em Juno, que pensa como quem tem 16. O problema é sua mentalidade infantil se estender a todos dentro do filme. Os pais divertidos, que querem livrá-la do constrangimento da juventude perdida, que jogo fazem? Eles afastam um problema e podem respirar um instante. Este fôlego novo vem ao final do filme, quando o cachorrinho tão desejado pela madrasta é finalmente aceito no lar (uma incongruência, afinal; o bicho tinha o acesso negado por conta dos problemas alérgicos da protagonista, não de sua gravidez).

Mas o que acontecerá a Juno no futuro, sem contar com o que ocorrerá ao ser que gerou? Em nome de pretensa incorreção política, ou com o objetivo de resolver o roteiro e as aflições imediatamente, o filme dá as costas, em primeiro lugar, à necessidade de um adotado de ter acesso a suas origens. Em segundo lugar, desconsidera a discussão dos problemas futuros das mães doadoras.

Mulheres que doam seus filhos sofrem ao relento, conforme sugere dissertação de mestrado publicada há oito anos no Brasil sob o título “Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção” (editora Cortez). Neste trabalho, a pesquisadora Maria Antonieta Pisano Motta descreve as aflições e sonhos terríveis de várias mães brasileiras que precisaram ou mesmo desejaram doar seus filhos e se viram, com o tempo, arrancadas de algo, uma essência, sem que alguém se compadecesse de seu sofrimento e todos seguramente as marginalizassem.

A inquietação provável e quase certa de um adotado de ter acesso a seus pais biológicos não é uma escolha da mãe, como sugere “Juno”, antes um direito do filho em busca de compor a própria história. E a mãe que doa também precisa ser compreendida, por constrangedor que isto possa parecer à zelosa sociedade. No Brasil, este acompanhamento social à mãe deveria ser mantido em lei, já que o aborto aqui é crime e esta mulher, caso não veja condições para sustentar seu filho, estará diante da única saída possível ao fazer a adoção.

Diablo Cody, ali nos Estados Unidos, não está muito preocupada com tudo isto, é claro. Em nome da visão politicamente incorreta, quer esnobar um direito assegurado, porque os direitos são todos seus, inclusive o de fazer um bom pé de meia com um texto esperto. Jason Reitman é seu par perfeito dentro do sistema hollywoodiano. Ele traduz em imagens esta liberdade de ação advogada. O filme é mulherista dentro do pior ângulo: ele transforma em vilão um homem de quase quarenta anos que coleciona guitarras Les Paul. Meninas, vamos trancar estas coisas barulhentes em um quarto, como faz a esposa do filme, e depois passear pelo shopping! Estranha maneira de criticar a imaturidade das pessoas.

O tempo passa. Não faz muitos anos, em 1999, o diretor Sam Mendes construía uma janela diferente para os Estados Unidos em “Beleza Americana”. O filme denunciava a hipocrisia sexual que puniria o voyeur e impediria o acesso dos homens maduros às menores coquetes. De quebra, castigava a mulher bem-sucedida que trabalhava e traía. Quem imaginaria um filme desses nesta era pós-”Sex and the City”? As mulheres casadoiras e bem de vida fazem as regras.

Confesso que gosto mais de Diablo Cody quando ela ironiza seu trabalho como stripper em cidades frias.

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